sexta-feira, 3 de abril de 2009

Invisibilidade pública

Ainda bem que eu sou uma pessoa que cumprimenta toda a gente em qualquer lado: seguranças, funcionários das limpezas, vizinhos, em qualquer lado.

O texto que vos deixo hoje é um pouco extenso, mas muito interessante. Não deixem de ler. Vão gostar.
Beijos,
T.


TESE DE MESTRADO NA USP por um PSICÓLOGO

'O HOMEM TORNA-SE TUDO OU NADA, CONFORME A EDUCAÇÃO QUE RECEBE'
'Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível'
Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da
'invisibilidade pública'. Ele comprovou que, em geral, as pessoas
enxergam apenas a função social do outro. Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social.

Plínio Delphino, Diário de São Paulo.

O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são 'seres invisíveis, sem nome'. Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da 'invisibilidade pública', ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa. Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de sua vida:

'Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode
significar um sopro de vida, um sinal da própria existência', explica o
pesquisador. O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não
como um ser humano. 'Professores que me abraçavam nos corredores da USP
passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes,
esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me
ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão',
diz. Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e das humilhações
diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os enxerga. E
encontram no silêncio a defesa contra quem os ignora.

Diário - Como é que você teve essa idéia?
Fernando Braga da Costa - Meu orientador desde a graduação, o professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma das provas de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma forma de atividade profissional que não exigisse qualificação técnica nem acadêmica. Então, basicamente, profissões das classes pobres.

Com que objetivo?
A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de
trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos na cena
pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qual eles
estão sujeitos dentro da sociedade. Outro nível de investigação, que vai
ser priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar as barreiras e
as aberturas que se operam no encontro do psicólogo social com os garis.
Que barreiras são essas, que aberturas são essas, e como se dá a
aproximação?


Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de um
estudante fazendo pesquisa?

Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal.
Chegando lá eu tinha a expectativa de me apresentar como novo
funcionário, recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas
os garis sacaram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisa
típica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos
em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o diferencial,
porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série de
fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira como
gesticulamos.. Os garis conseguem definir essa diferenças com algumas frases que são simplesmente formidáveis.

Dê um exemplo.
Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear com um dos garis.
De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de couro na mão. O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, o que é comum nessas situações. O gari, sem se referir claramente ao homem que acabara de passar, virou-se pra mim e começou a falar: 'É Fernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho. Já o pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E quando a gente está esperando o trem logo percebe também: o peão fica todo encolhidinho olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar só por cima de toda a peãozada, segurando a pastinha na mão'.

Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era
diferente?

Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro dia de
trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era um gari.
Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis são
carregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. É como se
eles fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar na caçamba,
quiseram que eu fosse na cabine. Tive de insistir muito para poder
viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de trabalho, continuaram
me tratando diferente. As vassouras eram todas muito velhas. A única vassoura nova já estava reservada para mim. Não me deixaram usar a pá e a enxada, porque era um
serviço mais pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse só com a
vassoura e, mesmo assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando
a dimensão de que os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem
socioeconômica deles.

Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?
Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.

Eles testaram você?
No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma
garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha
caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra
classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns
se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo
pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e
serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num
grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei
o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e
claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de
refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem
barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada,
parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse:
'E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?' E eu bebi.
Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.

O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?
Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aí
eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo
andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na
biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico, passei
em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse
trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação muito ruim. O
meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angustia, e a tampa da
cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar,
não senti o gosto da comida e voltei para o trabalho atordoado.

E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a
situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se
aproximando - professor meu - até parava de varrer, porque ele ia passar
por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como se tivesse
passando por um poste, uma árvore, um orelhão.

E quando você volta para casa, para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está
inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito
que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses
homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, freqüento a casa
deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador.
Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são
tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo
nome. São tratados como se fossem uma 'COISA'.

5 comentários:

beatriz disse...

...é...

Mas vamos lá aliviar a coisa... fosse ele gari em NY e isto não lhe acontecia! digo-te uma coisa uma das imagens que me ficaram da cidade foi: até os homens do lixo eram giros e simpaticos pois davam informações muito precisas e sempre com sorrisos! Ok sou uma maluca, com tanta cultura e eu fixei os senhores do lixo! e os policias , ai valha-me deus até tirei fotos com eles :)
Agora a sério o texto reflete bem os valores e a educação, graças a Deus ainda existem muitas pessoas que olham todos sejam eles quem forem...
beijo grande e bom fim de semana

Clara Azevedo disse...

Essa realidade não me parece nada portuguesa. Ou então estou enviesada pelo meu próprio comportamento: sempre cumprimentei toda a gente, tal como tu!

Anónimo disse...

Bom dia é para desejar um bom fim de semana, com muito descanso e boa disposiçõa, nós por cá vamos para o farol, como deves calcular a princesa está super feliz.
Beijos grendes amor
nina

Anónimo disse...

Eu cumprimento toda a gente por isso não me apercebi dessa realidade, mas deve existir.
Bom fim de semana, com tudo de bom

Beijos

São

Anónimo disse...

É de facto triste mas é verdade.
Eu por acaso não trabalhei de gari, mas trabalhei em cozinha de restraurante, e servi às mesas, e com isso aprendi muita coisa... é o que mais vejo, pessoas a serem arrogantes e sentirem-se superiores às outras, o que é a prova que o não são.
Obrigada pela partilha.
Beijo grande mana Grande
m