domingo, 29 de abril de 2012

A outra

Toda a minha vida coabitei com outro alguém dentro de mim. Nem me lembro de ter sido de outra forma. Este é um dos meus segredos, que carrego da infância. Desde sempre soube que não era apenas aquela pessoa que aparecia aos olhos dos outros. Durante muitos anos, a dualidade distorceu-me a maneira de ser: fui uma pessoa estranha para muitas outras, desagradável e sem qualquer ponta de interesse. Felizmente, houve umas quantas, poucas, que estranhamente me viram à partida como eu queria ser um dia. Sem elas, nunca teria percebido que era um pouco mais do que mostrava. E foi por elas, para não as desiludir, que fui tentando dar um pouco mais para o lado de fora.  Com frequência, não sabia o que dizer nem como agir e, com pontaria, tendia a escolher o pior lado. Fiz várias opções terríveis que me estragaram partes da vida. Mesmo nessas alturas sabia, pela perspectiva da inquilina interior, que estava errada. Mas continuava. Até porque isso dava origem a uma outra característica que também me acompanha há muito: a tendência para o abismo. Sei que não posso mas faço, sei que não devo mas vou, sei que não devia dizer mas falo, sei isto e aquilo mas isso não interessa nada. Muito mais do que destemida nas palavras, o que eu sou, grande parte das vezes, é burra.

E mesmo agora, que já sou uma pessoa fantástica e interessantíssima, continuo a viver com a outra entranhada. A que acredita que tudo o que está mal hoje à noite se irá compor amanhã mal nasça o sol. Mas tem de ser sempre amanhã porque a lá de dentro não tem metade da força da que está cá fora. Se a de dentro ganhasse mais vezes, e não só de vez em quando como acontece, o meu mundo seria maravilhoso: trataria muito mais e melhor de mim, já teria mandado às urtigas as causas de alguma urticária, se calhar não tinha emprego nem dinheiro para comer mas era absolutamente feliz com a minha filha, entre os meus livros e filmes, a jardinagem que nunca fiz e a culinária que adorava gostar nem que fosse um bocadinho, as minhas causas solidárias e ... ups, tenho de a calar, é que a tipa é sonhadora, romântica e muito, muito irresponsável...

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